Patologias venosas do SNC na infância

#vascular #pediatria #anatomia #embriologia #doençasvenosas 

Bem-vindos a mais um skyupdate premium! Eu sou Mariana Dalaqua e hoje irei discutir com vocês sobre as Patologias venosas do sistema nervoso central na infância, com base em um artigo publicado em 2020 na revista Neuroradiology.

O desenvolvimento e a fisiologia do sistema venoso intracraniano são complexos e não totalmente compreendidos. Na infância, tal complexidade predispõe a várias patologias, seja por mecanismos diretos ou indiretos. Começaremos revisando alguns conceitos de embriologia e variações anatômicas importantes. Em seguida, o artigo faz uma revisão ilustrada do assunto, com pontos-chave para a interpretação das imagens, enquanto propõe uma classificação pragmática para este grupo de doenças, globalmente agrupadas em três grandes categorias: desordens com shunts arteriovenosos, malformações venosas primárias e desordens veno-oclusivas.

Avaliação multimodal

            A tabela 1, disponível abaixo, compara as modalidades de imagem quanto às suas vantagens e desvantagens. O papel de cada modalidade em relação a cada patologia é discutido separadamente em seguida.

Tabela 1

 

Perspectivas embriológicas: pontos-chave

  • 6 semanas de idade gestacional (IG): prosencéfalo, mesencéfalo e rombencéfalo são drenados por um par de seios venosos longitudinais. Não existem veias cerebrais profundas;
  • 7 semanas de IG: as estruturas venosas marginais de cada lobo telencefálico se encontram na linha mediana para formar o seio sagital superior (SSS). A foice cerebral primitiva contém o plexo sagital, composto de vários canais anastomóticos a partir dos quais se desenvolverão o SSS e o seio reto. Um seio falcino persistente decorre da persistência de um ou mais canais das alças anastomóticas caudais deste plexo sagital, que podem persistir como variante ao nascimento, mas também podem reabrir como rota de drenagem venosa alternativa no contexto de trombose venosa de outros seios durais;
  • 8 semanas de IG: os plexos coroides desenvolveram uma importante conexão venosa com o SSS formado, a veia prosencéfálica mediana ou veia de Markowski (VPM). Em circunstâncias normais, o segmento anterior desta estrutura do teto do III ventrículo posteriormente atrofia, enquanto o segmento posterior recebe drenagem das veias cerebrais internas. Raramente, conexões arteriais anormais resultam em não-involução e hipertrofia desta estrutura, formando a chamada veia da malformação aneurismática de Galeno (VGAM). O desenvolvimento do plexo coroide acompanha-se de uma transição da drenagem venosa dominante do sentido centrífugo para o sentido centrípeto, por via das veias cerebrais internas.
  • 12 semanas de IG: a configuração do sistema venoso cerebral é muito próxima à do adulto.
  • Ao nascimento, o seio cavernoso ainda não está conectado às veias cerebrais (o que se dá aos 6 meses), sendo responsável predominantemente pela drenagem das órbitas e cavidades nasais. Esta falta de rotas de drenagem alternativas na infância precoce explica a propensão a desordens hidrovenosas cerebrais que podem causar rápida deterioração clínica (“melting brain syndrome”), o que pode ser agravado se houver estenose/oclusão dos bulbos jugulares.

Anatomia normal

Figura 1
Figura 1. (a) Representação dos sistemas venosos superficial e profundo e seus territórios de drenagem. Uma venografia por RM (MRV) demonstra as veias superficiais e profundas indicadas: seio sagital superior (SSS), seio sagital inferior (ISS), veia cerebral interna (ICV), seio reto (SS), seio transverso (TS), tórcula de Herófilo (TH), seio sigmoide (SigS), veia jugular interna (IJV).
(b) Territórios de drenagem: o sistema venoso superficial drena o córtex e uma região da substância branca subcortical de forma centrífuga. As veias corticais drenam para o SSS. A mais proeminente delas é a veia anastomótica superior (veia de Trolard). A área perisilvana e os lobos temporais anteriores são drenados pela veia cerebral média superficial (SMCV ou veia silviana) para o seio esfenoparietal (SPS) ou para o seio cavernoso (CS). Os lobos temporal posterior e parietal inferior são drenados pela veia anastomótica inferior (veia de Labbé) para o seio transverso. Estas veias geralmente demonstram uma relação recíproca, na medida em que, se uma é dominante, a outra é hipoplásica ou ausente. De fato, na presença de oclusão venosa profunda, duas ou mais destas veias anastomóticas podem se tornar proeminentes como resultado do redirecionamento centrífugo do fluxo venoso profundo. A zona periventricular central, incluindo os núcleos da base e tálamos, é drenada pelo sistema venoso profundo de maneira centrípeta. Este sistema é dividido em dois níveis: (1) o par de veias cerebrais internas, as veias basais de Rosenthal e a grande veia cerebral de Galeno e (2) o sistema venoso transcerebral. As veias cerebrais internas são formadas pela confluência das veias septal, anterior do caudado, ventricular, coroide e talamoestriada. A veia basal de Rosenthal recebe tributárias que drenam a ínsula inferior, os núcleos da base e os lobos temporais mediais. A grande veia cerebral é curta e única, que se une ao seio sagital inferior para formar o seio reto no ápice tentorial. As veias transcerebrais são veias medulares superficiais e profundas que drenam a substância branca hemisférica cerebral. Elas são de muito pequeno calibre. O tronco cerebral e a fossa posterior são drenados pelo sistema venoso infratentorial, que é dividido em três grandes grupos: (1) a veia cerebelar pré-central, a veia cerebelar superior e as veias pontomesencefálicas anterior e lateral, que drenam superiormente para a veia de Galeno e suas tributárias, (2) a veia petrosa, que drena anteriormente para o seio petroso superior e (3) as veias vermianas inferiores, que drenam posteriormente para os seios tentoriais.

 

Variantes anatômicas relevantes

  • Terço anterior do SSS atrésico: é a variante mais frequente do SSS. O segmento ausente é substituído por veias de drenagem parassagitais bilaterais que se unem ao SSS no plano da sutura coronal.
  • Bifurcação alta do SSS: pode simular trombose nas imagens axiais, devendo ser avaliada nas imagens coronais.
  • Assimetria e atresia do SSS (figura 2): achado comum, mais à esquerda. Podem aparecer como falhas de fluxo nas imagens TOF devido ao fluxo lento (avaliar bem as imagens T2 e pós-contraste para diferenciar de patologia).
  • Seio falcino persistente: veias intrafalcinas conectam o sistema venoso profundo ao SSS. A falha de regressão destas veias anastomóticas no período pós-natal forma o seio falcino persistente, que pode ser uma variante da normalidade em 2.5% dos casos, porém pode estar associada à VGAM, cefalocele parietal atrésica e a outras anormalidades comissurais da linha mediana (figura 2).
  • Seio occipital: alteração comum, presente em 60% dos casos, indo da tórcula venosa até a margem posterior do forame magno. Importante relatar sua presença, sobretudo nos casos em que pode ser necessária craniectomia da fossa posterior.
  • Pseudomassa torcular: presença de tecido extra-axial na região da tórcula venosa, que pode ser confundido com trombo, neoplasia, cefalocele, cisto de inclusão ou histiocitose de células de Langerhans. Geralmente, em isossinal T1 e hipersinal T2, com realce (figura 2); a ausência de baixo sinal de ADC ajuda a excluir os diagnósticos diferenciais. Pode representar tecido conectivo associado a retardo de ossificação local ou periósteo dural proeminente, e tem resolução espontânea na maioria dos casos.
  • Granulações aracnoides: projeções normais da aracnoide ao interior dos seios durais, podendo mimetizar trombos. Densidade e sinal iguais aos do LCR na TC/RM e formato arredondado (e não linear) ajudam a diferenciar de trombos.
  • Aumento fisiológico da densidade dos seios durais na TC (figura 2): seios venosos e veias corticais normais podem aparecer hiperdensos em recém-nascidos (devido ao aumento fisiológico do hematócrito e à hipodensidade do cérebro ainda não mielinizado) e em crianças com policitemia.
    Figura 2
    Figura 2. Variantes anatômicas normais. (a e b) Imagens axiais de TC sem contraste em um recém-nascido demonstrando bifurcação alta do SSS (a, seta), bem como hiperdensidade dentro do seio, secundária à policitemia fisiológica. A combinação destas características cria o “pseudossinal do delta vazio”, que imita um defeito de preenchimento. (c) A MRV de um menino de 4 anos mostra hipoplasia unilateral do seio transverso direito (seta), com um sistema esquerdo dominante. (d) A imagem sagital T1 de RM demonstra uma veia de Galeno proeminente (“bulbosa”, seta) como um achado incidental em um bebê com TCE. (e, f) Sequências sagitais T1 pré e pós-contraste T1 mostrando um seio falcino persistente (e, seta) associado a uma cefalocele atrésica (f, seta). (g) Axial T2 e axial T1-Gd (h) mostram seios occipitais (setas). Imagens axiais (i) e sagitais (j) T2 em um neonato demonstrando uma pseudomassa tórcular (j, seta). Imagens axiais T2 (k) e T1-Gd (l) mostrando granulação aracnoide (l, seta).

Classificação das desordens venosas pediátricas

Tabela 3

1. Desordens relacionadas a shunts arteriovenosos:

1.1 Shunts arteriovenosos durais (DAVS):  Representam cerca de 10% de todos os shunts AV intracranianos em crianças, dividindo-se em três tipos: shunts associados a malformações dos seios durais (DSMs), DAVS infantis e DAVS do tipo adulto. Os três tipos podem ser observados em recém-nascidos.

1.1.1. Malformações dos seios durais (DSM): desenvolvem-se secundariamente a um shunt AV na vida pré-natal, dividindo-se em dois tipos: torcular (com envolvimento dos seios durais posteriores e grandes dilatações venosas, com shunt AV de fluxo lento; pior prognóstico) e lateral (shunt AV envolve o seio sigmoide e o bulbo jugular; melhor prognóstico). Por USG, são tipicamente triangulares e hipoecogênicos, deslocando o vermis cerebelar anteriormente. Cerca de 82% desenvolvem trombos internos em algum momento. Podem apresentar arterialização detectável ao Doppler, o que deve ser pesquisado ativamente, uma vez que a ausência de arterialização está associada a regressão espontânea, podendo alterar a conduta pré-natal quanto a um possível aborto (nos países em que isto é permitido). A RM confirma os achados. A maioria das DSMs têm regressão espontânea na vida fetal e bom prognóstico (figura 3), e as que progridem exigem tratamento endovascular. Complicações incluem insuficiência cardíaca, desordens hidrovenosas, ventriculomegalia e hemorragia parenquimatosa.

Figura 3
Figura 3. Malformação do seio dural (DSM). Fila superior (a-e) mostrando DSM trombosada em uma menina de 4 dias. Fila inferior (f-h) mostrando DSM fetal, subtipo lateral (f, g, setas) e hemorragia associada do plexo coroide (h, seta). RM pós-natal aos 4 meses de vida no mesmo paciente (i, j) mostrando um seio venoso anômalo que regrediu ao longo da margem do tentório (i, seta).

1.1.2. Shunts arteriovenosos durais (DAVS) infantis: são o tipo mais comum de shunts AV durais em crianças, embora sejam raros. Geralmente têm alto fluxo e baixa pressão, na presença de um seio dural patente e hipertrofiado. A imagem demonstra shunts AV durais multifocais, com seios venosos alargados e ausência de malformações sinusais ou de lagos venosos. Complicações incluem hidrocefalia, estenose da drenagem venosa, congestão pial, infartos venosos, hemorragia, macrocrania, retardo do desenvolvimento neuropsicomotor (RDNPM) e/ou convulsões e insuficiência cardíaca. O estado de alto fluxo e baixa pressão leva à formação de fístulas piais secundárias drenando para veias corticais e para o seio venoso, o que pode regredir após o tratamento da DAVS. Na ausência de tratamento, a artéria nutridora forma aneurismas e fístulas multifocais, com progressão da hipertensão venosa e suas consequências, inclusive isquemia, hemorragia, herniação tonsilar e siringomielia.

1.1.3. DAVS do tipo adulto em crianças: em adultos, são considerados lesões adquiridas secundárias a tromboses venosas, trauma, antecedente cirúrgico ou infecção. Em crianças, ocorrem durante ou após a infância, sem fatores desencadeantes claros. São mais comuns nos seios cavernosos, causando sopro, cefaleia e sinais de hipertensão intraocular. A imagem demonstra dilatação dos seios cavernosos e de suas estruturas tributárias (veias oftálmicas superiores e seios petrosos). Sinais de refluxo leptomeníngeo indicam necessidade de tratamento (preferencialmente, endovascular). Quando não tratados, estes shunts podem causar perda visual, hidrocefalia e déficits neurológicos secundários a hipertensão venosa e hemorragia.

Figura 4
Figura 4. Fístula arteriovenosa dural (FAV) com varizes venosas. Imagens coronais T2 (a) e T1 sem contraste (b) e axial T1-Gd (c) mostrando uma grande variz venosa (a, seta), com a arteriografia digital (DSA) (d) confirmando múltiplas FAVs piais alimentadas pela ACI/ACM direita. O maior shunt foi observado na ACI supraclinoide para uma dilatação venosa anormal, que foi subsequentemente embolizada por molas.


1.2. Shunting arteriovenoso cerebral

1.2.1. Malformação da veia de Galeno (VGAM): apesar do nome, representam, na verdade, conexões anômalas (diretas e/ou nidais) entre artérias intracranianas e a veia prosencefálica medial de Markowski (VPM), sendo classificadas em murais ou coroidais. O tipo coroidal corresponde a mais de 90% dos casos e tem uma rede nidal na parede anterior da VPM, suprida por artérias coroidais, pericalosas e talamoperfurantes. Geralmente, são shunts de alto volume e mau prognóstico, associados a insuficiência cardíaca congestiva. Já as VGAMs murais apresentam um número limitado de conexões arteriais fistulosas, tipicamente na parede inferolateral da VPM, sem uma rede interposta. Estes pacientes apresentam-se mais tardiamente com sintomas hidrovenosos, incluindo RDNPM, hidrocefalia ou convulsões; eventualmente podem ser assintomáticos. À USG, as VGAMs são identificadas como grandes estruturas hipoecogênicas tubulares ou arredondadas na linha mediana posterior (a variz), com fluxo arterializado à análise Doppler. As demais artérias podem apresentar impedância significativamente variável, devido ao fenômeno de roubo de fluxo. Pode haver calcificações locais e trombose parcial. A RM confirma os achados, destacando-se os flow voids dentro da variz e nas artérias nutridoras e o sinal variável do trombo, além das alterações parenquimatosas (em geral, isquemia ou hemorragia locais). Complicações incluem hidrocefalia, macrocrania, prolapso tonsilar e “melting brain syndrome” (hipertensão venosa prolongada levando à hipóxia crônica e destruição acelerada da substância branca, com hidrocefalia secundária, condição rapidamente fatal se não tratada com urgência).

Figura 5
Figura 5. Malformação aneurismática de veia de Galeno (VGAM). Fila superior: (a, b) RM fetal e USG Doppler (c) demonstrando uma VGAM. Fila do meio: Imagem axial T2 (d) de um menino de 6 meses de idade com uma VGAM coroide típica. A DSA (e) mostrava a comunicação arteriovenosa, com múltiplos vasos coroides drenando para o segmento anterior da dilatação. A drenagem venosa era lenta, com bulbos jugulares hipoplásicos, e o hemisfério esquerdo predominantemente drenado anteriormente através do seio cavernoso e do sistema venoso facial. A DSA (f) realizada 3 meses após a embolização inicial mostrou shunts AV residuais; a criança precisou repetir a embolização. Fila inferior: caso demonstrando um “melting brain” em uma criança de 4 anos com embolização prévia e características de hipertensão venosa crônica, como evidenciado por calcificações na TC (g) nas interfaces corticossubcorticais de ambos os hemisférios cerebrais. As imagens axiais de RM (h, i) mostram atrofia cerebral e sinais de congestão venosa no território venoso profundo (h, seta) e infratentorial, secundária à obstrução progressiva do retorno venoso. No momento da RM, a criança apresentava quadro neurológico em deterioração.


1.2.2. Dilatação aneurismática da veia de Galeno (VGAD):
espectro de situações em que uma fístula AV ou uma MAV nidal usa a veia de Galeno madura como sua principal via de drenagem, e esta secundariamente se dilata. A condição se apresenta tardiamente na infância, geralmente após os 3 anos, com déficits neurológicos, hemorragia ou RDNPM. O tratamento do shunt AV subjacente permite a regressão da VGAD.

2. Malformações primárias

2.1. Varizes venosas

2.1.1. Varizes venosas primárias: são raras e representam um desafio diagnóstico, resultando de persistência da drenagem embriológica e inerente fraqueza da parede venosa. A maioria dos casos é assintomática; raramente os pacientes se apresentam com cefaleia ou convulsões devido ao efeito expansivo local, trombose ou hemorragia. Uma avaliação radiológica completa deve ser feita, incluindo-se a angiografia digital (DSA), a fim compreender o papel de drenagem da variz em relação à drenagem cerebral e predizer o risco de sua oclusão. Na TC, aparecem como lesões geralmente extra-axiais isodensas e com intenso realce, podendo causar remodelamento ósseo adjacente. Na RM, podem simular um meningioma, e uma fase venosa ajuda a confirmar a natureza vascular. Casos sintomáticos requerem tratamento endovascular ou oclusão cirúrgica.

2.1.2. Varizes venosas secundárias:
dilatações focais secundárias ao aumento da pressão por shunts vasculares (incluindo FAVs piais e MAVs nidais). Desta forma, a VGAD pode ser considerada um tipo de variz secundária. Em outra situação, as varizes secundárias podem ocorrer sem shunts AV, nos contextos de DVAs.

2.2. Anomalia do desenvolvimento venoso (DVA): representam 60% das “malformações vasculares”, devendo ser consideradas uma variação extrema da drenagem venosa normal. Têm prevalência estimada entre 1.5-9.6%, presentes em todos os grupos etários, sem predileção de gênero. Uma DVA consiste em veias medulares dilatadas convergindo para uma veia coletora principal, que pode drenar para o sistema venoso superficial e/ou profundo. Tais vasos substituem veias normais e são necessários para a drenagem do parênquima local. O risco de hemorragia de uma DVA é estimado em 0.68% por ano. São achados raramente sintomáticos, apenas raramente exigindo tratamento. Algumas foram relacionadas a mutações de herança dominante no cromossomo 9p. Malformações cavernomatosas podem estar associadas em 6% dos casos, e outras condições associadas podem ser sinus pericranii, síndrome do nevo em bolha de borracha azul, malformações corticais e malformações venosas faciais.

Figura 6
Figura 6. Anomalia do desenvolvimento (DVA). Imagem coronal T1-Gd (a) mostrando uma DVA no mesencéfalo e ponte à esquerda, associado a um “cavernoma” pontino, mais bem demonstrado na sequência T2-GRE axial (b). O axial T1-IR (c) em outra criança que apresenta convulsões mostra uma displasia cortical focal (círculo) à esquerda. O SWI axial no mesmo paciente (d) demonstra uma DVA complexa associada.



2.3. Sinus pericranii: comunicação anormal entre os sistemas venosos intra e extracraniano por um defeito ósseo com veias emissárias transósseas. O componente extracraniano pode ser uma variz (mais comum), uma veia dilatada, malformação venosa ou uma MAV. O componente intracraniano depende da localização da lesão: lesões medianas tendem a se comunicar com o seio dural subjacente, enquanto lesões parassagitais comunicam-se com uma veia cortical. São lesões geralmente assintomáticas, detectadas pela palpação do componente extracraniano, que geralmente aumenta de tamanho em decúbito dorsal ou durante a manobra de Valsalva. Formas congênitas são fortemente associadas a outras condições, tais como DVAs, malformações venosas aneurismáticas profundas, craniossinostoses, malformações cavernomatosas e sd. de von Hippel-Lindau. O diagnóstico é clínico e a imagem é confirmatória, servindo para caracterizar o componente venoso intracraniano e pesquisar anomalias associadas. Se necessário tratamento, o prognóstico é excelente.

Figura 7
Figura 7. Sinus pericranii. USG (a) demonstrando a conexão entre um sinus pericranii e o SSS em uma criança com um abaulamento na linha mediana. TC sagital pós-contraste (b) em um menino de 7 anos com um nódulo extracraniano na linha mediana mostrando uma variz superficial (seta) e a veia emissária transóssea. Os mesmos achados são confirmados pela DSA na visão posterolateral (c).



2.4. Síndrome de Sturge-Weber (SWS) e sd. metamérica venosa cerebrofacial: facomatose rara, de herança esporádica, caracterizada por malformações faciais (mancha em “vinho do porto”, associada à mutação no gene GNAQ, 19q21), malformações oculares e leptomeníngeas capilares (“angiomas”, que na verdade representam rede de capilares e canais venosos piais, que não regrediram desde a vida fetal). Os sintomas mais comuns são convulsões, déficits focais e retardo mental. Alterações oculares incluem glaucoma, buftalmo e perda de visão. As alterações vasculares cerebrais e faciais obedecem a uma distribuição metamérica. A estase venosa no local dos “angiomas” se relaciona a isquemia crônica e atrofia local, podendo haver “mielinização acelerada” adjacente como achado precoce, além de realce leptomeníngeo e hemangioma coroidal (figura 8). Achados tardios incluem atrofia, gliose, hipertrofia coroidea e calcificações distróficas (“em trilhos de trem”).

Figura 8
Figura 8. Síndrome de Sturge-Weber (SWS). Imagens coronal FLAIR (a) e coronal e axial T1-Gd (b,c) mostrando uma extensa malformação pial venocapilar, bilateral mas predominante à direita, com perda de volume hemisférico direito. Observe uma extensa malha de malformação anormal das veias extracerebrais à direita (a, b, setas) comunicando-se com a malformação pial. Coleções subdurais bilaterais também são mostradas, e não são incomumente associadas à SWS.



2.5. Telangiectasia hemorrágica hereditária: desordem familial caracterizada por telangiectasias mucocutâneas e malformações vasculares afetando vários órgãos. Tem herança autossômica dominante, causada por mutações em genes dos cromossomos 9q34 (HHT1), 12q13 (HHT2) ou 18q21 (SMAD4). As manifestações intracranianas incluem FAVs piais e durais, MAVs, malformações capilares, DVAs, telangiectasias capilares pontinas e malformações cavernomatosas. FAVs piais têm altos volumes nos shunts, resultando em aumento do calibre das artérias nutridoras, ectasia venosa e alterações locais secundárias à hipóxia. O risco de hemorragia destas malformações é discutível na literatura (figura 9).

Figura 9
Figura 9. Telangiectasia hemorrágica hereditária (HHT) em uma menina de 6 anos com convulsões. Observe a malformação arteriovenosa (MAV) focal associada a uma variz venosa demonstrada por RM em T2 axial (a), T1 pré (b) e pós-contraste (c), 3D-TOF (d) e confirmada por DSA (e,f). A MAV foi embolizada.



2.6. Malformação venosa difusa: Raramente, pode-se encontrar uma malformação venosa intracerebral difusa mimetizando uma neoplasia. Tal massa pode ser calcificada, com focos hemorrágicos e realce tipo “blush”. Tal malformação não é associada a shunts internos e pode apresentar fenômeno de roubo de fluxo venoso, determinando atrofia do parênquima adjacente (figura 10).

Figura 10
Figura 10. Malformações venosas difusas. Esta criança de 3 anos apresentava cefaleia. Imagens axiais da TC (a), T2 (b), T1 pré-contraste (c), DWI (d), ADC (e) e T1-Gd (f) mostram uma grande massa heterogênea com uma combinação de calcificações internas e hemorragia, com algum realce pós-contraste. Este caso foi inicialmente relatado como uma neoplasia cerebral primária, mas a histologia confirmou uma malformação venosa difusa.



3. Desordens veno-oclusivas

3.1. Trombóticas

3.1.1. Trombose sinovenosa cerebral (CSVT): Trombose sinovenosa cerebral (CSVT): a incidência na população pediátrica da Europa e América do Norte é estimada em 0.6:100.000/ano, com 30-50% dos casos ocorrendo em RNs e com predominância no sexo masculino. Os fatores de risco dependem da idade e incluem complicações perinatais (hipóxia, ruptura prematura de membranas, infecção materna, alterações placentárias, diabetes gestacional), infecções sistêmicas (sepse, desidratação) como fatores principais em RNs, e infecções de cabeça e pescoço e doenças crônicas em crianças mais velhas. Coagulopatias (deficiência de fator V, proteína C e S, anticorpos anticardiolipina) devem ser pesquisadas em todos os pacientes com trombose sinovenosa espontânea. Em todas as idades, o sistema venoso superficial é mais afetado que o profundo, especialmente os seios SS e transverso. Prematuros podem ser completamente assintomáticos, crianças menores podem se apresentar com convulsões e déficits difusos, enquanto crianças maiores costumam apresentar cefaleia, alteração do nível de consciência e/ou déficits focais. Em toda criança com hemorragia inexplicada ou lesão parenquimatosa não restrita a um território arterial, trombose venosa deve ser pesquisada. A USG com Doppler é muito útil em RNs e crianças menores, devendo-se lembrar que fluxo lento pode mimetizar trombose. Em crianças com sintomas inespecíficos, TC sem contraste geralmente é realizada no cenário de pronto-socorro, podendo demonstrar um seio venoso ingurgitado e hiperdenso. No entanto, deve-se ter muito cuidado para não confundir um exame normal em um RN (hiperdensidade fisiológica por aumento do hematócrito) com trombose venosa; a injeção do contraste esclarece a dúvida. Uma vez que devemos sempre evitar a TC nas crianças devido à radiação ionizante, a RM com fase venosa é o exame de escolha. Até 40% destes pacientes apresentam infartos venosos, dos quais 70% têm transformação hemorrágica.

Tabela 5

Figura 11
Figura 11. Evolução da trombose sinovenosa. RN termo, hipotônico ao nascimento e com pouco esforço respiratório, desenvolveu convulsões às 12h de vida. A TC inicial (fila superior) no 2º dia de vida mostra edema cerebral difuso, com aspecto expandido e hiperdensidade das estruturas venosas (seios transversos, SS, tórcula e veias cerebrais internas, assim como veias corticais), alterações compatíveis com trombos extensos. Suas convulsões continuaram e foram refratárias ao tratamento médico. A TC realizada no 9º dia (fila do meio) mostra a resolução do edema cerebral, mas aumento da densidade e da extensão do trombo dentro do seio transverso, tórcula e do SSS. As imagens de RM realizadas no 9º (i, j) e 15º (k, l) dias mostram a evolução da intensidade do sinal do trombo. Observe o efeito da desoxi-Hb no axial T2 e o hipersinal T1 dentro dos seios SS, transversos e tórcula trombosados, simulando o fluxo presente dentro destas estruturas (estrela). As convulsões continuaram e foram refratárias ao tratamento clínico; o EEG continuou mostrando anormalidades epilépticas multifocais. Posteriormente, ele faleceu após convulsões descontroladas e parada respiratória.



Figura 12
Figura 12. Trombose venosa dural secundária a uma infecção mastoidea em uma criança mais velha. Imagens axial T2 (a), T1-Gd axial (b) e coronal (c) mostram falha de enchimento focal no seio sigmoide direito (b, seta), adjacente a um abscesso mastoideo direito. A infecção é a causa subjacente da trombose venosa e deve ser procurada cuidadosamente em todos os casos. Observe também a ausência de fluxo dentro da veia jugular interna direita na RM venosa (d).



3.1.2. Patologias venosas medulares profundas: congestão e/ou trombose das veias medulares profundas é uma causa reconhecidamente importante de isquemia e infarto periventricular. Causas comuns incluem insulto à matriz germinativa (MG), sepse, desidratação e infecções (especialmente virais, como por parechovirus e rotavirus). Se existe antecedente de AVC em crianças da mesma família, deve ser pesquisada causa genética, tal como alterações do colágeno IVA (mutações COL4A1 e COL4A2) e de moléculas de adesão (JAM3). Doenças sistêmicas e infecções virais podem causar alterações multifocais destas veias, enquanto hemorragias da MG e trombofilias não apenas causam danos focais como podem levar a infartos hemorrágicos periventriculares (PVHI), tipicamente poupando o córtex, o que os distingue dos infartos arteriais. Focos lineares e de orientação radial com restrição à difusão ou efeito “blooming” no SWI refletem trombose e/ou ingurgitamento venoso das veias medulares profundas (figura 13).

Figura 13
Figura 13. Infarto hemorrágico periventricular (PVHI). Fila superior: axial T2 (a), sagital T2 (b) e axial SWI (c) em criança com suposto PVHI e mutação COL4A1 subjacente. Fila inferior: axial T2 (d), sagital T2 (b) e SWI axial (c) mostram um caso de suposta trombose profunda da veia medular com hemorragia perivenular em um recém-nascido com infecção por rotavírus posteriormente confirmada.



3.2. Não trombóticas: alguns autores já propuseram a relação entre obstrução à drenagem venosa, hipertensão venosa e hidrocefalia secundária. Vamos revisar alguns destes mecanismos.

3.2.1. Craniossinostose e obstrução do retorno venoso:
condição causada por fusão prematura de algumas ou todas as suturas cranianas, levando a um formato e tamanho anormal do crânio. A drenagem venosa anormal nesta condição resulta da estenose ou ausência do complexo jugular-sigmoide (bulbo jugular e segmento intraósseo da veia jugular interna / do seio sigmoide), o que pode ser uni ou bilateral. Nesta condição, a drenagem se faz por veias emissárias colaterais (condilar posterior, estilomastoidea, occipital) em direção ao plexo suboccipital, às veias occipital, auricular posterior e cervicais profundas, e ao plexo vertebral interno. Três mecanismos explicam a drenagem venosa anormal: 1) anatomia óssea anormal; 2) mutações no receptor do fator de crescimento do fibroblasto (FGFR); 3) persistência do padrão de drenagem venosa fetal. Destaca-se que a avaliação por MRV é limitada neste cenário, devido a questões técnicas (efeitos de saturação no 2D-TOF, phase contrast pouco sensível ao fluxo lento e dependente da velocidade de codificação), sendo preferível a análise por TC nesta condição (também para a avaliação óssea).

Figura 14
Figura 14. Crianças com craniossinostose (a-c) e acondroplasia (d-f). Note a drenagem venosa extracraniana proeminente (b,c,f, setas) nestas duas crianças, consequente à estenose dos seios venosos intracranianos durais.



3.2.2. Acondroplasia (AC) e obstrução da drenagem venosa: AC é a forma mais comum de displasia esquelética não letal, tem herança autossômica dominante causada por mutações no gene FGFR3 (cr. 4p16.3). Assim como na craniossinostose, a hipertensão venosa na acondroplasia provavelmente se relaciona à compressão do SSS e dos seios sigmoides, com desenvolvimento de veias emissárias colaterais na junção craniovertebral e associação de hidrocefalia.

3.2.3. Estenose do seio transverso na hipertensão intracraniana idiopática (IIH): desordem relacionada ao aumento de pressão liquórica acima de 280 mmH2O, sem uma causa identificável. É uma condição rara em RNs, aumentando de incidência entre os 2 e 12 anos (sem relação a sexo ou peso) e ainda mais após a puberdade (12-15 anos, com predominância em pacientes mulheres obesas). Estenose do(s) seio(s) transverso(s) está presente em 94% dos casos de IIH. Embora inicialmente considerada como causa de IIH, acredita-se que a estenose pode ser secundária à hipertensão intracraniana e não sua causa, sendo ainda controversa a indicação de tratamento endovascular (stenting) da estenose. Os pacientes podem se apresentar com cefaleia, náuseas, vômitos, alterações visuais, tinnitus, fotofobia e rigidez de nuca. A RM é útil para descartar outras causas de hipertensão intracraniana e para detectar seus sinais (retificação posterior do disco óptico, papiledema, distensão e tortuosidade do espaço liquórico perióptico e redução da altura da hipófise, achados inespecíficos isoladamente, porém suspeitos para IIH quando combinados).

Conclusão

O artigo revisa as variantes venosas normais e as armadilhas na interpretação da imagem das patologias venosas cerebrais da infância, com uma abordagem radiológica e patofisiológica, propondo uma classificação útil para a prática clínica.

Artigo original

0 0 votos
Classifique o conteúdo
Inscreva-se
Notificações de
0 Comentários
Mais antigos
Mais novos Mais votados
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários